SEMPRE LÁ
Nº 521
Visitar o tio era sempre motivo de alegria. De casa até lá
eram uns quinhentos metros, não mais que isso. Pedia licença pra mamãe e, uma
vez concedida, saia que nem um raio. As visitas ao tio sempre reservavam coisas
boas e surpresas. Por exemplo, a tia sempre fazia feijão que com um sabor bem
diferente daquele lá de casa. Nunca fiquei sabendo o que ela colocava nele. Sei
que era temperado com banha de porco, daqueles que todos nós ajudávamos a carnear.
Aliás, esses dias eram de grande festa. Tudo era diferente, desde a hora de levantar-se.
Nunca depois do sol nascer... mas isso é assunto para outro dia.
Chegava lá e batia palma. Chamava pelo tio. A tia era surda,
só se comunicava por gestos e se a gente gritasse ao seu ouvido. Mamãe dizia
que ela perdeu a audição quando era adolescente.
Às vezes entrava pé por pé, para assustar à tia. Ela dava um
pulo e um tapa, que era muito mais um gesto de carinho do que uma reprimenda. Perguntava
onde estava o tio e saía pulando. Quase sempre estava fazendo alguma coisa na
lavoura ou arrumando trato para os animais. Eles tinham vacas leiteiras,
porcos, galinhas. Mas das galinhas era a tia quem cuidava. Na hora do trato,
ela saía com um montão de milho dentro do avental, como se fosse uma trocha e
gritava prrrr... O galinhedo corria com desespero.
A tia parecia uma ilha no meio de tanta galinha. Os tamancos da tia ficavam sujos
do pisotear das galinhas disputando o milho.
Uma coisa que chamava minha atenção lá, era um relógio
despertador, verde. Ele ficava numa espécie de pedestal, numa das paredes da
cozinha. Estrategicamente, bem no alto para que nenhum sobrinho sapeca pudesse
alcançar. O tique-taque era tão alto que se podia ouvir de toda a casa. À noite,
o tio subia no banquinho, tirava o relógio de lá e dava corda, torcendo uma
borboleta na sua traseira. Dava várias voltas até trancar a corda.
Gostava de olhar para o relógio. Sentava num degrau da porta,
que separava a sala da cozinha e ficava olhando para ele no seu incansável tique-taque.
Ficava ali por um tempo que não dava para medir. Sei lá, acho que se passavam
séculos, ou milênios... o tempo era o que menos importava. Aliás, acho que o
tempo nem passava... tinha a sensação de que aquele momento era eterno...
infinito! Tinha vezes que ia visitar o tio só para olhar e ouvir o relógio, o
resto não importava. Era um momento feliz! Cheio de encantamento! Abundante de
significado!
O relógio estava sempre lá!