quarta-feira, 8 de junho de 2011

CRÔNICA DO MAR



As ondas afagam-se, suspendem-me, levam-me para onde não quero ir. Mas logo me lanço a nado, com ritmo cadenciado e uniforme, e sinto que o mar vai cedendo às braçadas que projeto para diante.
É aí que decido enfrentar as ondas onde elas nascem. Obedecendo a um recuo e avanço incessantes, a massa informe ameaça levantar-se contra mim. Entre o recuo e o avanço, o mar levanta-se, forma uma crista indisciplinada que avança contra a praia, que não reage.
Eu, porém, quero vencer a onda, ludibriá-la, aproveitá-la para subir e olhar a terra desde a sua crista fugaz. Quero enfrentar a onda no seu momento mais ameaçador. Mergulho sob o tumulto espumoso de toneladas de água em revolta, e surjo do outro lado da onda cuja marcha implacável passou sobre mim como se nada fosse.
O mar e eu, agora, nos abraçamos num amplexo de amizade e concorrência. Sinto-me gratificado por ser livre e poder enganar a onda. Ela, no entanto faz-me sentir que minha liberdade tem um preço, e que preciso lutar, aproveitar o mo­mento certo, imaginar uma estratégia, para poder gozar sua companhia sem que ela se torne perigosa.
Afinal, eu e o mar, somos amigos, mas sei que tenho que estar atento. O mar pode ser traiçoeiro e um dia poderei ser definitivamente traído, enquanto gozo esta amizade inquieta e desafiante.
Areias Brancas, fevereiro de 1976.[1]
Bispo Isac Aço



[1] AÇO, Isac. Crônica do mar. A Razão, Santa Maria, p. 15, 18 abr.1976

4 comentários:

  1. Meu estimado colega Garin,
    uma vez mais evocações com um poema que mesmo já tendo mais de um terço de século poderia ser data como de hoje. Recordo a primeira vez que vi o mar. Nosso professor, que cultivava os gregos, fez nos gritar: “Tálata! Tálata! θάλασσα θάλασσα recordando o herói mitológico (penso que Ulisses) que (re)encontra o mar;
    Obrigado pela viajada ao começo dos anos 50s.

    attico chassot

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  2. Caro Chassot,

    o mar é sempre desafiante pelas suas várias dimensões: pela beleza de suas águas e ondas, pela sua força indomável, pelos riscos que representa etc. Nessa crônica, percebo o autor tomando contato, quem sabe pela primeira vez, com uma dessas dimensões, a que mais nos desafia - sua força.

    Obrigado pelo teu comentário e pela recordação da mitologia grega, precursora de nossa forma racional de pensamento.

    Garin

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  3. Caro Garin,

    Linda esta crônica. Eu não conhecia, embora lembre de quando tinha 6 anos e fui com meu pai para para o Mar de Areias Brancas. Para mim sim era um dos primeiros contatos com o mar, meu pai, ao contrário, tinha uma vivencia bem maior com o mar da África em sua infância. Talvez prudência e decisão sejam substantivos que traduzam a idéia de quem luta no mar da vida. Lembro-me de Galeano falando sobre o filho de um colono quando vê pela primeira vez o mar e que se agarra ao pai dizendo: "Pai, me ajuda a olhar!" Não há como absorver tudo, mas há que se ter determinação sobre que caminho tomar: Por cima da onda ou no meio dela?

    Obrigado por esta lembrança!
    Abraços!
    Felipe Aço

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  4. Caro Felipe,

    esta crônica diz muito do teu pai, pelo menos da visão de quem conviveu com ele na qualidade de Bispo e pastor da Igreja Metodista. O amor que ele tinha pela missão podia ser traduzido com uma palavra: garra.

    Fico feliz por ter podido proporcionar essa lembrança para ti.

    Um abraço,

    Garin

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