O verão tinha sido quente e de pouca chuva. As lavouras prometiam uma colheita insuficiente para enfrentar o inverno que se aproximava e, segundo comentavam, iria ser rigoroso e longo – daqueles que avançam primavera adentro. Dava para sentir a preocupação dos meus pais. Além dos seis filhos, a vovó morava conosco. Com o final de março e a chegada de abril, apareceu a oportunidade de trabalharmos na colheita do arroz. Saímos em busca de uma empreitada. Algumas lavouras depois, encontramos um empresário que nos contratou para colher duas quadras de arroz.
Dentro de alguns dias terminamos o trabalho e nos dirigimos ao empresário para entregar as foices e receber nosso salário. Depois do pagamento ele olhou para o meu pai e perguntou: “Se vocês quiserem, podem respigar[1] no lote do Teobaldo![2]” Lembro da alegria do meu pai: acho que ele quase beijou o empresário. No outro dia, bem cedo, voltamos à lavoura para respigar e recolhemos dois sacos de arroz (cerca de 120 kg).
Foi essa generosidade do empresário que aliviou a situação de necessidade naquele inverno. Lembro de minha mãe agradecendo a Deus pela vida daquele proprietário que ofereceu sua sega para que pudéssemos juntar as sobras de arroz depois da colheita.
A atividade de respigar as lavouras de cereais era um preceito bíblico, seguido pelos primeiros israelitas quando entraram na Terra Prometida. Tratava-se de uma preocupação moral para com os pobres que necessitavam encontrar um meio de sobrevivência, e fazia parte das determinações de Javé para o povo que recém havia chegado.
Na zona rural de Cachoeira do Sul, na década de 1960, essa prática era efetivada por alguns proprietários mais sensíveis. Não sei como ela é observada hoje, mas tenho certeza de que muitas famílias escaparam da fome, graças a essa generosidade de alguns proprietários que exercitavam a solidariedade para com os pobres do campo.
“Quando também fizerdes a colheita da vossa terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua sega. Semelhantemente não rabiscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o SENHOR vosso Deus.” (Lv 19.9-10)
[1] Recolher as espigas que ficaram por colher nas searas. [Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=respigaracesso em: 29 abr 2011].
[2] A prática do respigar deveria ser realizada num lote diferente daquele que teria sido colhido pelo respigador, para evitar fraudes.