sábado, 30 de abril de 2011

RESPIGAR

O verão tinha sido quente e de pouca chuva. As lavouras prometiam uma colheita insuficiente para enfrentar o inverno que se aproximava e, segundo comentavam, iria ser rigoroso e longo – daqueles que avançam primavera adentro. Dava para sentir a preocupação dos meus pais. Além dos seis filhos, a vovó morava conosco. Com o final de março e a chegada de abril, apareceu a oportunidade de trabalharmos na colheita do arroz. Saímos em busca de uma empreitada. Algumas lavouras depois, encontramos um empresário que nos contratou para colher duas quadras de arroz.

Dentro de alguns dias terminamos o trabalho e nos dirigimos ao empresário para entregar as foices e receber nosso salário. Depois do pagamento ele olhou para o meu pai e perguntou: “Se vocês quiserem, podem respigar[1] no lote do Teobaldo![2]” Lembro da alegria do meu pai: acho que ele quase beijou o empresário. No outro dia, bem cedo, voltamos à lavoura para respigar e recolhemos dois sacos de arroz (cerca de 120 kg).

Foi essa generosidade do empresário que aliviou a situação de necessidade naquele inverno. Lembro de minha mãe agradecendo a Deus pela vida daquele proprietário que ofereceu sua sega para que pudéssemos juntar as sobras de arroz depois da colheita.

A atividade de respigar as lavouras de cereais era um preceito bíblico, seguido pelos primeiros israelitas quando entraram na Terra Prometida. Tratava-se de uma preocupação moral para com os pobres que necessitavam encontrar um meio de sobrevivência, e fazia parte das determinações de Javé para o povo que recém havia chegado.

Na zona rural de Cachoeira do Sul, na década de 1960, essa prática era efetivada por alguns proprietários mais sensíveis. Não sei como ela é observada hoje, mas tenho certeza de que muitas famílias escaparam da fome, graças a essa generosidade de alguns proprietários que exercitavam a solidariedade para com os pobres do campo.

“Quando também fizerdes a colheita da vossa terra, o canto do teu campo não segarás totalmente, nem as espigas caídas colherás da tua sega. Semelhantemente não rabiscarás a tua vinha, nem colherás os bagos caídos da tua vinha; deixá-los-ás ao pobre e ao estrangeiro. Eu sou o SENHOR vosso Deus.” (Lv 19.9-10)


[1] Recolher as espigas que ficaram por colher nas searas. [Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/default.aspx?pal=respigaracesso em: 29 abr 2011].
[2] A prática do respigar deveria ser realizada num lote diferente daquele que teria sido colhido pelo respigador, para evitar fraudes.

CAFÉ FILOSÓFICO

Aproveito este espaço para te convidar para o Café Filosófico, evento promovido pelos acadêmicos e pelo Curso de Licenciatura em Filosofia do Centro Universitário Metodista,do IPA.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

VELHA FIGUEIRA

Por vezes me vejo pensativo. Pela cabeça passa a imagem de uma figueira. Uma árvore frondosa e antiga sobre a qual brincava ao longo de minha infância. Seus galhos se constituíam num verdadeiro parque de diversões. Ora eram balanços, ora cavalo de corrida. Noutros momentos transformavam-se em poltrona de ônibus.
Nestes meus devaneios sempre recordo a velha árvore como um lugar de alegria, segurança e paz. Mentalmente, é muitas vezes ali que repouso para novos embates da vida.
Espiritualmente, também necessitamos desse tipo de refúgio. Só que neste nível, os espaços especiais não resolvem. Não adianta eu entrar para um local, um santuário, um quarto fechado, um campo aberto.
Nesse tempo de coisas incertas, de realidades fluídas, precisamos de algumas respostas que nos ajudem no momento da incerteza. Como nos desgastamos no cuidado do outro (familiar, aluno, cliente, amigo, etc.) necessitamos cuidar de nós mesmos. Não há uma fórmula para isso. Para algumas pessoas, o cuidar de si pode ser assistir a um espetáculo. Para outras, um bom livro, uma boa música, uma boa conversa. Para outros ainda, que colocam a fé como elemento fundamental, uma conversa franca com Deus – uma volta para dentro de si em busca do humano-divino que muitas vezes fica de lado, na correria do cotidiano.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

DISCIPLINA

Trago, nesta quinta-feira, uma reflexão sobre a apresentação da Esquadrilha da Fumaça, de São Paulo, da Força Aérea Brasileira, que recentemente apresentou-se no Rio Grande do Sul. Chama-nos a atenção, sobretudo a disciplina que a equipe de pilotos possui para que seus aviões possam realizar as mais espetaculares manobras aéreas sem se tocarem e sem colocarem em risco suas vidas e a vida dos espectadores.
Para nossa reflexão, adiciono o poema “Estações no caminho para a liberdade[1] de Dietrich Bonhoeffer[2], dedicado ao seu cunhado e amigo, Eberhard Betghe, no transcorrer do seu aniversário.
Disciplina
Se partes em busca da liberdade, aprende primeiro
a disciplinar os sentidos e a alma, para que os desejos
e teus membros não te joguem de um lado para o outro.
Castos sejam tua mente e teu corpo, plenamente submissos a ti,
e obedientes, a fim de buscarem a meta que lhes foi apontada.
Ninguém experimentará o mistério da liberdade a não ser pela disciplina.

Ação
Não fazer e ousar qualquer coisa, mas o que é direito,
não se deter no possível, mas agarrar corajosamente o que é real,
não na fuga das idéias, mas somente na ação é que se encontra a liberdade.
Abandona o vacilar medroso e enfrenta a tempestade dos acontecimentos,
sustentado somente pelo mandamento de Deus e por tua fé,
e a liberdade envolverá jubilosa o teu espírito.

Sofrimento

Maravilhosa transformação. As mãos tão fortes e ativas
te foram amarradas. Impotente, solitário, vês o fim
da tua ação. Mas então respiras aliviado e colocas o que é direito,
tranqüilo e consolado, em mãos mais fortes e te dás por satisfeito
apenas por um instante tocaste, feliz, a liberdade,
e logo a entregaste a Deus, para que ele a aperfeiçoe esplendidamente.

Morte

Vem, pois, sublime festival no caminho para a liberdade eterna,
morte, derruba os incômodos grilhões e muros
de nosso corpo mortal e nossa alma obcecada,
para que vejamos, afinal, o que aqui não nos foi permitido vislumbrar.
Liberdade, procuramos-te muito na disciplina, na ação e no sofrimento;
morrendo reconhecemos, no semblante de Deus, a ti mesma.


[1] BONHOEFFER, Dietich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Editora Sinodal; EST, 2003, p. 520.
[2] Dietrich Bonhoeffer (Breslau, 4/02/1906 – Berlim, 9/4/1945), teólogo e pastor da Igreja Luterana da Alemanha, foi membro ativo da resistência alemã, anti-nazista e um dos fundadores da Igreja Confessante, um segmento da Igreja contrária à política nazista. Foi preso e enforcado pelos nazistas pouco antes do final da Segunda Grande Guerra do século XX. O poema “Estações no caminho para a liberdade” foi escrito durante a prisão.


Dourado pelo sol... o rio vai ao encontro do mar! O mar precisa dele... e ele, do mar!


Mesmo dourado pelo sol, sem arrogância, o rio corre para o mar. Antes porém, alimenta a mesa e as esperanças dos pescadores ribeirinhos. Em sua sabedoria, percebe que o mar necessita dele... e ele, do mar!

quarta-feira, 27 de abril de 2011

“RECALCULANDO A SUA ROTA”

Quando retornava para casa depois do “feriadão” de Páscoa, o GPS[1] do carro, a certa altura, anunciou “recalculando a sua rota”. A cada alteração que fazia, fosse escolhendo uma rua menos movimentada ou mesmo preferindo uma estrada que me proporcionasse uma paisagem mais interessante, a frase sempre se repetia. É claro que o aparelho me oferecia as informações adequadas para que eu não me perdesse. A cada situação de “desobediência” correspondia uma interferência do aparelho. Numa situação específica, quando me desviei radicalmente da rota planejada pelo aparelho ouviu-se uma ordem impositiva e radical: “retorne assim que puder!”
As modernas tecnologias de informação são preciosas e, como escrevi ontem, quase indispensáveis para a vida contemporânea. Em certos momentos a gente se sente tão dependente delas que nosso cotidiano pode se tornar uma “tragédia” sem as TIC[2].
Contudo, nosso destino não pode ser traçado por um aparelho programado para indicar os caminhos. Como sujeitos das máquinas, precisamos determinar o que elas devem fazer. Cada ser humano é senhor do seu destino e construí-lo é tarefa de cada um(a). Mais que as máquinas, preciso saber o que prefiro fazer, mesmo que depois de planejado, possa alterar meu destino.
Seguidamente tenho me deparado com informações completamente inconsistentes do tipo, “infelizmente não podemos lhe atender hoje porque o sistema está fora do ar!” Noutra versão ouvimos, “caiu o sistema, não podemos fazer nada!”
Cá com os meus botões fico na dúvida: como seres humanos, controlamos as máquinas ou, há muito, são elas que nos controlam?
Sabe de uma coisa, resolvi meu problema: desliguei o GPS e curti o meu retorno conforme as alterações que decidi fazer, e pronto![3]
Desejo-lhes uma quarta-feira cheia de realizações!


[1] Global Positioning System
[2] Tecnologias de Informação e Comunicação.
[3] Tá certo que me perdi umas quantas vezes, mas acabei chegando em casa.

terça-feira, 26 de abril de 2011

UMA (nova) “TRAGÉDIA”

Domingo o meu computador parou de funcionar. Não adianta me perguntarem o que houve, parou! Só isso! Não aparecia nada, não ligava, os leds não apareciam, simplesmente não funcionou. Para quem é dependente desse tipo de equipamento, isso foi uma “tragédia”. Claro que estou exagerando na utilização desse adjetivo. Simplesmente fiquei olhando para a tela preta, sem poder ver nada do que poderia me ter chegado através dos múltiplos meios de comunicação digital – e-mail, facebook, blog, etc. Ainda bem que consegui agendar o blog da segunda antes do blackout digital.
Impossível passar um dia, com o computador quebrado, sem exercer o direito à reflexão. Pois me veio á mente memórias da infância. Estávamos com uma viagem programada para uma segunda-feira (ano de 1960). Nossa família possuía dois cavalos adestrados para puxar a carroça. No domingo um deles machucou uma das patas. Pronto: não houve possibilidade de viagem na segunda.
Em todas as épocas, nós, seres (ainda humanos) somos dependentes das diferentes tecnologias. A “esteira” histórica do desenvolvimento civilizatório sempre foi pontuada pelos mais distintos artefatos e metodologias descobertos ou criados pelo ser humano. Depois disso, nos tornamos dependentes dessas engenhocas que nos facilitam a vida. Veja, por exemplo, como viver hoje sem o computador? Como sobreviver sem a agilidade da internet?
Pois é, privado dessa tecnologia (que hoje me domina), passei um dia diferente: não consegui me comunicar com os meus amigos virtuais; não consegui ler os blogues que sigo; não consegui ler os meus e-mails.
Por outro lado, pude apreciar, com mais profundidade, a beleza da paisagem, conversar com mais liberdade com meus vizinhos, curtir um pouco mais a vida em família. O blackout tecnológico não é de todo mau: ajuda-nos a perceber o lado mais próximo da realidade física que nos rodeia.
Boa terça-feira, com ou sem computador!

segunda-feira, 25 de abril de 2011

CONVERSANDO COM O MUNDO

Havia terminado de tomar café e percebi uma conversa persistente, como se fosse um discurso perto do meu apartamento. Percebia que era uma voz imatura, mas contínua. Não conseguia distinguir de onde vinha nem o que dizia, mas era insistente.
Saí à janela para verificar o que estava ocorrendo. Deparei-me com um menino de uns 3 ou 4 anos, junto à janela do apartamento abaixo do meu, olhando para a paisagem e falando, como se estivesse conversando com um personagem real, concreto.

Aquele menino estava ali, fazendo o seu discurso do nada... para o nada... Talvez em sua mente desfilasse uma multidão de pessoas, animais, brinquedos, fantasmas, duendes... quem sabe, quem adivinharia? Ele estava conversando com o “mundo”...!
Acho que temos conversado muito pouco com o “mundo”. Nossas interlocuções são sempre dirigidas a alguém, sempre possuem um objetivo, são absolutamente lógicas, expressam idéias, falam de fatos etc., etc. Cada vez menos, nestas lidas competitivas do mundo contemporâneo, temos tido tempo de parar para “conversar com o mundo”! Aliás, quase não conversamos mais: teclamos. Perdemos a capacidade de imaginar o mundo fantástico que está além da lógica, dos métodos, dos negócios, do computador, do e-mail, das redes sociais, do mundo sério.
Será que é por isso que estamos cada vez mais doentes?
Aquele menino estava tendo a conversa mais séria que já ouvi, a mais lógica de que já participei, a mais sábia de que já tive notícia: conversava com o mundo dele próprio – aquele que está esquecido dentro de cada adulto.

Boa semana... pós-feriadão!

domingo, 24 de abril de 2011

ESCURIDÃO DE PERSPECTIVAS

Sempre que necessito levantar à noite passo um trabalho enorme: custo a encontrar os chinelos, saio tropeçando no pé da cama, esbarro na porta, bato a cabeça no puxador do guarda-roupa, é uma tragédia. Acho que a maioria das pessoas passa trabalho semelhante. A escuridão representa o profundo vazio que nos envolve, quando não há luz.
Maria Madalena fora ao túmulo de Jesus ainda tropeçando nos entraves da morte. Sendo ainda escuro seu andar era trôpego. A memória de uma crucificação vergonhosa atormentava. O vazio que enchia a vida dos seguidores de Jesus turvava a visão do caminho. Cobertos pela nuvem cinzenta da falta de perspectiva o andar dos discípulos era incerto. Entre o voltar para o passado ou avançar para o nada, os seguidores do Senhor titubeavam errantes por ruas e estradas no alvorecer do domingo.
É Madalena quem descortinou a realidade tenebrosa. A pedra estava revolvida e o Senhor havia ressuscitado. Não apenas um novo dia nascia, mas também um tempo novo de liberdade, amor e paz, raiava na vida dos discípulos.
Freqüentemente andamos com a visão turvada pelo emaranhado dos nossos problemas. Trôpegos, não conseguimos avançar, pensando exclusivamente em nossas dificuldades. Quando enxergamos a pedra revolvida, vislumbramos a luz de Deus em nossas vidas e os caminhos se abrem. É a presença do Ressuscitado entre nós!
“E no primeiro dia da semana, Maria Madalena foi ao sepulcro de madrugada, sendo ainda escuro, e viu a pedra tirada do sepulcro.” (Jo 20.1)

sábado, 23 de abril de 2011

CELEBRAÇÃO DA PÁSCOA

                                        A blogada deste sábado santo ou sábado de aleluia é especial. Ela foi produzida pelo professor Dr. Attico Inácio Chassot, do http://mestrechassot.blogspot.com/ e por este editor. O texto do historiador da Ciência e do teólogo  é publicado, simultaneamente nos dois blogues. As fotos são de Gerardo Menoscal para o jornal Expreso de Guayaquil, enviada por Matilde Kalil – nossa leitora –, que escreveu: para que conozcan un poco sobre las tradiciones ecuatorianas durante la Semana Santa.... pescadores cargando una inmensa cruz al mar. A esta coedição juntam-se nossos votos de uma feliz páscoa.
A. Chassot & N. Garin


No Antigo Testamento a Páscoa (Bíblia Hebraica) é a celebração da passagem de Javé que veio para ferir todos os primogênitos dos egípcios. Os israelitas deveriam matar um cordeiro ou cabrito novo e comê-lo assado à noite com pão sem fermento acompanhado de ervas amargas, sem deixar qualquer sobra. Com o sangue do animal deveria ser marcado o umbral da porta onde se realizava a celebração para que o Senhor não entrasse em tal casa. Essa refeição deveria ser feita em trajes de viagem o que sinalizava a necessidade de uma viagem às pressas. A origem dessa celebração é antiga e remonta a um período anterior a Moises quando os israelitas pediram a Faraó, licença para celebrar no deserto (Ex 3.18). A Páscoa é celebrada na lua cheia do equinócio da primavera, no dia 14 do mês de abib, ou das espigas, também chamado de nisan, após o Exílio.
A origem da palavra pessach é discutida. Poderia ter relação com o assírio pasahu que corresponde à “apaziguar”. Outra hipótese é origem egípcia pa-sh, “recordação” ou de pasah, “golpe”. No entanto, a Bíblia liga esse termo ao verbo passach “coxear” ou executar uma “dança” ao redor de um sacrifício. Daí nasce o sentido figurado, assumido atualmente: “passar” ou “saltar” (passar por cima da casa dos israelitas ou saltar suas casas).
Mas é no êxodo que essa celebração adquire um sentido definitivo de libertação. Através da intervenção de Javé, em um processo longo que impôs diversos reveses ao Faraó, o povo pode fugir da terra do Egito e da opressão que os mantinha cativos em trabalhos forçados. Dessa forma, Javé demonstra que é Deus forte, capaz de dobrar a espinha do mais poderoso rei da terra. Essa festa é marco importante para os israelitas como memória da libertação da escravatura egípcia. Na história bíblica foi repetida em diversos momentos sempre remarcando momentos de libertação e alegria pela ação de Javé. Foi assim na entrada do povo em Canaã, depois nas reformas de Ezequias e Josias e no retorno do Exílio em 515 a.C.
No Novo Testamento a Páscoa adquire um sentido diferente. Para os israelitas a Páscoa tinha o significado de libertação da escravidão egípcia pela intervenção divina e consequente êxodo em direção á terra prometia.
Para os cristãos, a Páscoa inaugura uma nova religião. Jesus representa a chegada do messias há muito esperado. O cordeiro, ou cabrito sacrificado pelos israelitas se transforma no sacrifício do Filho único de Deus. No lugar dos pães ázimos, cozidos às pressas para a viagem pelo deserto, os cristãos comem o corpo de Cristo, o novo pão da nova viagem. No lugar de sangue que marcava as casas dos filhos de Javé, esse novo sangue é bebido pelos seguidores e sinaliza os separados para o Senhor, num banquete sublime que introduz os fiéis no Reino de Deus. Se antes o sangue do cordeiro (ou cabrito) libertava os israelitas da morte dos primogênitos, o sangue do novo cordeiro é a passagem para uma nova vida. A libertação comemorada pelos cristãos é a libertação da vida de pecados sob a égide da Lei. A Lei agora é outra, pois se baseia na universalidade do amor: ao próximo como a si mesmo e a Deus sobre tudo.
Temos uma marcação de nossas vidas muito definidas (mais que pensamos, sentimos ou até aceitamos) pela lua como era a moda para civilizações mais ancestrais, que tinham no céu - mais admirado, pois mais visível num espaço não ofuscado pela iluminação artificial como aquela das cidades - uma regulação dada pelas diferentes fases da lua a cadenciar a passagem dos dias. Temos, por exemplo, um calendário dividido em semanas (lunar), que na verdade é resultado de um ciclo lunar, aposto em nosso calendário solar.
Por algum tempo, utilizou-se exclusivamente o calendário lunar - baseado no período de 12 lunações, ou seja, 354,36708 dias. Uma lunação é o intervalo entre duas luas novas consecutivas e dura 29,53059 dias. Assim num período de 12 lunações transcorrem 354 dias. Falta, então cerca de dez dias para o Sol ocupar a mesma posição na eclíptica. Consequentemente, as estações do ano ocorreriam pelo calendário lunar, a cada ano, cerca de dez dias mais cedo. Para corrigir isso, por exemplo, no calendário judaico, há anos de 13 meses. O ano de 13 meses tem a mesma função do ano bissexto para o calendário gregoriano: ajustar o calendário ao tempo de um ano trópico. Nos tempos bíblicos, o ano com um décimo terceiro mês era adicionado a cada três anos. Na última das revisões, adota-se um ciclo de 19 anos: o terceiro, sexto, oitavo, décimo primeiro, décimo quarto, décimo sétimo e décimo nono anos têm 13 meses. Mais corretamente deveríamos dizer que esse calendário é lunissolar, pois são feitas correções para posicionamento com o ano solar em um ano lunar.
É importante constatar o quanto ainda em nosso calendário solar se inserem definições lunares. Vejam o hibridismo da determinação da Páscoa e do Natal, as duas maiores festas da cristandade. Usamos muito a propósito, o termo cristandade, significando o conjunto dos povos ou países cristãos e, assim, não nos referimos aos que professam a fé cristã. A primeira ocorre numa data móvel, regida pelo calendário lunar, entre 22 de março e 25 de abril. E para que não se diga que a lua determina a data de eventos móveis religiosos (Pentecostes, Corpus Christi, Ascensão etc) ela também define a data do Carnaval - que pode ocorrer entre 03 de fevereiro e 09 de março - até porque esta festa se associava às celebrações quaresmais, segundo alguns sendo a celebração do adeus a carne (= carne vale) antes dos dias de abstinência de carne que se prolongavam até a Páscoa. Um jornal de Porto Alegre, na véspera da Páscoa de 2006, em um material de curiosidades acerca da festa, explicou que para calcular a data da Páscoa bastava adicionar 46 dias a data do Carnaval. Certamente, ao fazer matéria sobre o Carnaval poderia explicar que para calcular a sua data basta subtrair 46 da data da Páscoa. O Natal ocorre sempre em 25 de dezembro, com data definida pelo calendário solar, provavelmente para fazer-se sincrética às festas pré-cristãs celebradas pela passagem solstício de inverno no hemisfério Norte.
A data da Páscoa (tanto na Igreja Católica como nas Igrejas Protestantes e Igrejas Ortodoxas, mas não há necessariamente coincidência com o calendário judeu) é calculada como ocorrendo no primeiro domingo após a lua cheia (lembremo-nos que Sexta-Feira Santa é dia de plenilúnio) seguinte à entrada do equinócio de outono no hemisfério sul ou o equinócio de primavera no hemisfério norte. Essa definição foi um momento que pôs fim a uma histórica divergência dentro da Igreja. Há denominações cristãs que tem fixada a Sexta-Feira Santa em 12 de abril, definida a partir de leituras dos Atos dos Apóstolos relacionadas com a data da morte de Jesus no suposto ano 33 da era cristã.
Esta maneira de se definir a data da Páscoa aconteceu em 325, quando ocorreu Concílio de Niceia, tido na história como primeiro Concílio ecumênico. Até então o Cristianismo permanecia tão somente como uma seita do judaísmo tal como os Fariseus, os Saduceus ou os Essênios - os cristãos eram inicialmente conhecidos como Nazarenos -. É a partir deste Concílio que se pode falar em uma Igreja cristã.
 Nicéia, atual cidade de Iznik, está localizada na província de Anatólia (nome que se costuma dar à antiga Ásia Menor), na Turquia asiática. Este primeiro Concílio Ecumênico da Igreja, foi convocado pelo Imperador Flavius Valerius Constantinus (285-337). Constantino, estadista sagaz que era, inverteu a política vigente, passando da perseguição aos cristãos, à promoção do Cristianismo, vislumbrando a oportunidade de relançar, através da Igreja, a unidade religiosa do seu Império. Contudo, durante todo o seu regime, não abriu mão de sua condição de sumo-sacerdote do culto pagão ao "Sol Invictus". O Imperador Constantino tinha um conhecimento rudimentar da doutrina cristã e suas intervenções em matéria religiosa visavam, a princípio, fortalecer a hegemonia do seu governo. Assim, buscou com o Concílio a unificação de uma religião oficial para o Império e para tal trouxe propostas as mais diversas.
Uma das propostas de Constantino, aos mais de 300 prelados conciliares foi dissociar a data da celebração da Páscoa da data judaica. Como judeus e cristãos observavam o Shabat e participavam das mesmas festividades era preciso demarcar diferenças. Assim, outra decisão deste Concílio de Nicéia consistiu na transferência do dia santo e de descanso semanal guardado pelos primeiros seguidores de Cristo, de Sábado para a Prima Feria, que passou a denominar-se dies domini, daí Domingo.
Na história há muitas voltas e reviravoltas nas tentativas de se fazer um calendário não só mais universal e também mais astronomicamente correto. Aqui não é momento para falar delas, mas houve uma mais recente que é significativa, até porque dá o nome ao calendário que temos hoje - o calendário gregoriano --, que substitui o calendário juliano.
A Igreja Ortodoxa não aceitou alterar o calendário, pois dizia que estava em desacordo com o que fora estabelecido no Concílio de Nicéia. A partir daí, a Páscoa Ortodoxa e Latina (Católico-romana) passaram a ter datas diferentes, coincidindo apenas de 4 em 4 anos. A Igreja Ortodoxa, fiel às decisões deste Concílio, continua seguindo este calendário, observando fiel e firmemente os cânones deste concílio, não aceitando reformas e inovações.
Esperamos que com a coprodução deste ter contribuído para respostas a algumas das muitas questões trazidas nestes dias, das quais certas são malversadas pelos assim chamados formadores de opinião. Renovamos nos votos de uma Páscoa abençoada a cada uma e cada um de nossos leitores crentes e não crentes.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

O FILHO

Acredito que não haja mãe que não sonhe numa carreira brilhante para seu filho ou sua filha. Muito pior do que o rumo tortuoso que alguns(as) filhos(as) vão tomando na vida é a dor de vê-los errar sem poder consertar.
A situação de Maria tinha momentos dessa dor. Para quem acompanhava o suplício do filho sobre uma cruz, símbolo das mais cruéis condenações, o sentimento não poderia ser outro – um filho perdido. Lembremos que até então não se sabia da Ressurreição nem da caminhada da Igreja. Não só para ela como também para os demais discípulos, o Gólgota era o fim de uma luta. A pedra que fechava o túmulo de José de Arimatéia estava sendo colocada sobre uma história de lutas, mas também selava as esperanças da mãe aflita.
Entretanto, para nós é fácil. Estava começando um novo tempo. Maria foi consolada pelo ‘Discípulo Amado’ mas os questionamentos não foram respondidos.
Cada mãe carrega no coração a dúvida sobre o amanhã do(a) seu filho(a). Como Maria, toda a mãe necessita entregar seu filho(a) ao mundo, à vida como quem entrega-o(a) nas mãos de Deus. Tenho certeza de que Maria foi para casa com um aperto profundo no coração. Mas qual filho teve um amanhã como o Filho dela?
"Ora Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho." (Jo 19.26)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

AÇÃO DE GRAÇAS [da Kiddush à Eucaristia]

A noite era chuvosa e não convidava muito para uma reunião na igreja. Havia preparado os elementos necessários para a realização daquela celebração. Meia hora antes de iniciar, me dirigiu ao templo, acendi as luzes e abri as portas. Dessa forma pretendia incentivar as pessoas para que entrassem. Era quinta-feira da semana santa e a celebração recordava a instituição da Santa Ceia, ou Eucaristia, para utilizar a forma grega.
Passados alguns instantes as pessoas começaram a chegar. Algumas vinham direto do trabalho, outras tiveram a oportunidade de se preparem melhor para a cerimônia. Em pouco tempo já éramos cerca de trinta pessoas. Então iniciei a explicação da cerimônia:
“Na quinta-feira[1] da semana santa celebramos a reunião que Jesus realizou com os seus discípulos mais próximos, também chamados de apóstolos (os enviados). O Evangelista Marcos narra esse momento da seguinte maneira:
“E, enquanto comiam, tomou Jesus um pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lhes, dizendo: Tomai, isto é o meu corpo. A seguir, tomou Jesus um cálice e, tendo dado graças, o deu aos seus discípulos e todos beberam dele. Então lhes disse: Isto é o meu sangue, o sangue da [nova] aliança, derramado em favor de muitos. Em verdade vos digo que jamais beberei do fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, no reino de Deus. Tendo cantado um hino, saíram para o Monte das Oliveiras.” (Mc 14.22-26).
Essa refeição, realizada por Jesus com seus apóstolos, constituía uma prática comum do grupo. Era conhecida pelo termo kiddush e consistia de pão comum e um cálice de vinho[2] (normalmente misturado com água). Após a refeição era cantado um hino visto que a mesma tinha o sentido de “santificação”.
Segundo a tradição, tratava-se de uma celebração preparativa ao sábado, um dia no qual não se fazia qualquer trabalho, nem mesmo a própria comida (Ex 16.23).
Essa refeição foi transformada, por Jesus, na Santa Ceia (Ευχαριστία) e passou a ser partilhada com todos os seus seguidores após o domingo da Ressurreição. Nessa nova refeição, já não mais é celebrada a preparação para o sábado (prática judaica), mas a rememoração de Cristo que se oferece para alimentar os fiéis que aderem ao cristianismo.”
Depois de partilharmos do pão e do vinho, cantamos um hino e nos recolhemos ás nossas casas em meditação.


[1] Nesta semana foi divulgada uma notícia sobre a possibilidade de haver um equívoco no calendário sobre a data da instituição da Santa Ceia. Santa Ceia ocorreu na quarta-feira, diz professor. Disponível em: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a3279884.xml&template=3898.dwt&edition=16930&section=1014. Acesso em: 20 abr 2011.
[2] Nas igrejas evangélicas, normalmente é servido o suco de uva, em substituição ao vinho, em respeito às pessoas que foram dependentes do álcool, como bebida.

Promessa de tempestade...expectativa de bonança!



Foto capturada no dia 14 de abril de 2011, às 7h37min, em Porto Alegre, RS, em um dia que se iniciou com um belíssimo céu colorido e depois se transformou em chuva.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O TEMPO [II]


[SUGIRO ASSISTIR AO VÍDEO ANTES DE LER]



Ontem, entre 15h34min19seg e 15h34min35seg estive pensado no que deveria escrever para publicar hoje. Mais uma vez pensei no tempo[1]. Mesmo que ele possa ser contestado, é no decorrer dele que nossa vida se expressa. Enquanto contemplava o relógio em seu implacável tic...tac... pensei nas contradições do nosso tempo[2].
Nossos relógios são, quase todos, digitais[3], porém marcam uma percepção analógica[4]. Essas paralelas e simultâneas dimensões nas quais existimos servem de estrutura mental e reflexiva para as nossas percepções. O tempo sinalizado pelos ponteiros do relógio nos impulsiona a pensar num passar constante dos fatos enquanto nossa forma de pensar obedece outra ordem de prevalências.
O cérebro se localiza espacial e temporalmente numa latitude específica, mas a mente reflexiva se move na dimensão “digital”: avança ou retrocede na seqüência dos fatos pouco importando a localização física do sujeito pensante. Podemos estar aqui, no Brasil, mas refletimos sobre a maneira como os japoneses, acometidos por um desastre natural (projetando nossa mente para o passado), irão reconstruir suas vidas (projetando nossa mente para o futuro). Assim, nos movemos para lá e para cá sem qualquer dificuldade. A dificuldade é “estar aqui”, no exato momento dos fatos imanentes.
Não há como negar que o tempo permanece como uma dimensão misteriosa para a nossa mente. É impossível abranger seus limites (se é que os têm). Não há como conceituá-lo, pelo menos em toda a dimensão do seu ser (se é que ele o contém). Dessa forma, vamos continuar refletindo sobre o tempo... por mais algum tempo ainda!
Pois é, nesses dezesseis segundos foi o que consegui pensar para compartilhar hoje. Entretanto tenho dúvidas: não estarei completamente equivocado?


[1]duração relativa das coisas que cria no ser humano a idéia de presente, passado e futuro; período contínuo e indefinido no qual os eventos se sucedem” [Houaiss]
[2]época na qual se vive” [Houaiss]
[3]que trabalha exclusivamente com valores binários (diz-se de dispositivo)” [Houaiss].
[4]forma de medida ou representação de grandezas na qual um sensor ou indicador acompanha de forma contínua, sem hiatos nem lacunas, a variação da grandeza que está sendo medida ou representada.” [Houaiss]