terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O ABENÇOADO

ANO 01 – Nº 305

Ele habita a av. Dom Pedro II há muito tempo. Seguidamente o encontro caminhando num trecho de quatro ou cinco quarteirões. Sobe e desce conforme a necessidade e a hora do dia. É um morador de rua, no caso, de avenida.

A primeira vez que eu o vi foi no inverno de 2006, parece-me que durante o mês de junho. Era muito cedo, sete e meia quem sabe. Sai para fazer a minha caminhada matinal. Era um daqueles dias terríveis. As rádios anunciavam a temperatura de sete graus e oito décimos. Lembro que precisei reforçar o agasalho com um blusão sobre o abrigo. Calcei meus tênis e subi em direção a terceira perimetral. De repente assustei-me com aquele vulto enrolado em caixas de papelão desmontadas. O corpo todo coberto, mas os pés para fora. Na hora me doeu o coração, mas como o sol estivesse começando a mostrar seus primeiros raios consolei-me com a noção de que logo ele seria aquecido pelo astro-rei.

Foto ilustrativa
Outro dia o encontrei caminhando na mesma região da cidade. Trata-se de um homem na casa dos trinta anos, aparentemente de boa saúde. Sua principal atividade é caminhar ao longo da avenida. Sobrevive com as sobras de comida que lhe dão ou de alguma coisa que consegue deixada como lixo. Não se pode dizer que seja um maltrapilho, pois se veste razoavelmente bem para um morador de rua. Não importa a estação do ano, ele está sempre por ali, no mesmo lugar. À noite encontra uma marquise e se acomoda embaixo. Dias atrás o encontrei fazendo sua caminhada no mesmo lugar, banhado, barbeado, representando bom preparo físico.

Pois é, semana passada, depois da caminhada matinal sentei perto de uma janela por onde corria uma aragem gostosa. Como a roupa estivesse suada, logo comecei a espirrar. Esses espirros viraram um resfriado que exigiu medicamentos para não obstruir as veias respiratórias e se transformar numa apneia com risco de sufocamento.

Estabelecendo uma comparação entre o morador de rua, que nem sempre se alimenta adequadamente e se protege, com cuidado, do frio inverno e eu, que me alimento regularmente e tenho casa aquecida no inverno, percebo como ele é abençoado com uma resistência física que poucas pessoas têm. Se qualquer um de nós tivesse que passar pelos rigores que imagino, ele passe, já teria sucumbido a uma pneumonia. Não quero dizer que a gente não seja abençoada, mas que ele desenvolveu uma resistência física muito maior. Como diria meu pai, recitando um antigo adágio, “Deus tira os dentes, mas alarga a goela!”. É preciso refletir, com profundidade, sobre as possibilidades do ser humano diante das adversidades. De fato, não há regras e nem verdades absolutas quando se fala de sobrevivência humana.

Votos de uma boa terça-feira!

2 comentários:

  1. Caríssimo colega Garin,
    O provérbio — um etnossaber citado com propriedade pelo teu pai — não é homólogo a outro que a sabedoria popular difunde: “Deus não dá nozes para quem não tem dentes!”
    Uma terça-feira muito boa e a estima do
    attico chassot

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  2. Caro Chassot,

    obrigado por lembrares mais esse ditado. Assim, o povo vai costurando uma noção de divindade ao mesmo tempo em que constrói os valores morais.

    Um abraço,

    Garin

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