ESCANINHOS

Ontem à tarde precisei apanhar alguns livros na biblioteca e, como estivesse com a mochila a tiracolo, apanhei uma chave e me dirigi aos escaninhos[1], antes de entrar. Apanhei a chave número 156, abri o compartimento, coloquei o material e tranquei a chave.

Enquanto subia as escadas comecei a refletir sobre os escaninhos da biblioteca. Aliás, sobre os escaninhos de forma geral. Eles são ótimos para acomodar os nossos pertences, mas instigam a nossa consciência. Colocados um ao lado do outro, formam um grande armário repleto de espaços próprios para organização e segurança. De outra sorte são simbólicos da maneira como muitas vezes pensamos a existência. Não apenas a existência do ser humano, mas a de todas as coisas que compõem o nosso mundo.

É comum termos uma visão de mundo como se tudo se organizassem em escaninhos. A saúde fica no hospital e nas clínicas; a educação está reservada para as escolas e universidades; a logística é atribuição dos transportadores; a gestão é concebida como papel dos administradores, direções, governos etc.; o abastecimento é com o comércio composto de estabelecimentos que vão do mercadinho da esquina aos grandes conglomerados de shoppings e assim por diante. Em todos os segmentos da vida humana procuramos localizar as coisas em ‘escaninhos’.

Parei por algum tempo para repensar esta mania de pensar tudo de forma organizada como se fosse uma grande prateleira, composta de milhares de ‘escaninhos’. É preciso reavaliar nossa visão de mundo e nossa visão da vida. A existência não se resume num conjunto de ‘escaninhos’. Nosso existir se intromete no existir de outras existências. A pessoa que trabalha com logística também atua na educação, participa do abastecimento, faz gestão e por aí afora. Quem trabalha com educação também mexe com saúde, participa de logísticas, faz gestão e muito mais.

O nosso existir é uma ação multicompartilhada[2], interativa, multiforme e inter-relacionada com uma multiplicidade de outras áreas do existir. Somos seres de relacionamento e habitamos uma casa[3] na qual, uma ação pessoal tem repercussões múltiplas e interfere na trajetória de outras tantas pessoas, inclusive algumas que nem conhecemos. O meu ato de viver-no-mundo é resultado de uma história que me antecedeu e pode ser causa de modificações no futuro. Enfim, somos seres sociais interligados por laços de dependência e de mutua influência.

É impossível pensar o existir como uma sequência de escaninhos. Somos muito mais um elo social e histórico. Multicompartilhamos a existência, porque viver é multicompartilhar o ser.

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[1] Foto disponível em http://ifetriodosul.blogspot.com/2009/03/escaninhos.html. Acesso em 30 jun 2011.

[2] Temos não dicionarizado, cujo significado é compartilhado multiplamente em diferentes áreas.

[3] No sentido de globo terrestre.